Em busca da negatividade perdida: considerações sobre o papel dos ‘especialistas do suicídio’ e a tarefa da crítica literária
O artigo, escrito por Rodolfo Rorato Londero, aborda a temática do suicídio na literatura, contrapondo-a ao discurso prevalente dos “especialistas da prevenção”.
Resumo
O autor inicia o artigo com uma citação de Cioran, que se refere aos românticos como os “últimos especialistas do suicídio”, sugerindo que, desde então, a abordagem do tema tem sido improvisada. Londero argumenta que o século XXI, marcado por “doenças neuronais” como depressão e síndrome de burnout, viu o surgimento de “especialistas” (psiquiatras, psicólogos e profissionais da saúde) que promovem campanhas de prevenção ao suicídio, muitas vezes apoiadas em estatísticas alarmantes.
A crítica central do artigo recai sobre a “banalização do sofrimento” e a “positividade do bem-estar” impostas pela “sociedade de desempenho” e pelo “hiperconsumo”, que levam à busca por soluções rápidas e químicas para transtornos emocionais, ao invés de uma compreensão mais profunda. O autor contesta a ideia de que a difamação do suicídio seja uma solução, afirmando que a literatura, e seus “especialistas do suicídio”, são necessários para reintroduzir a “negatividade da morte” em uma sociedade excessivamente positiva.
Londero, citando Georges Bataille, descreve a literatura como “o mal”, “a parte maldita”, o “princípio da perda”, que tem a capacidade de desvelar a transgressão da lei e dar vazão à negatividade, sem compromisso com a criação de uma nova positividade. Ele se aprofunda na ideia de que a literatura, ao materializar o “deserto interior”, pode “esmagar” tanto o escritor quanto o leitor, indicando que a arte não é necessariamente terapêutica e que a obra nunca é verdadeiramente acabada para o artista.
O artigo também discute a dificuldade da crítica literária em abordar estados como a depressão, cujo “núcleo é a morte” e é “quase inimaginável” para quem não a conhece. Londero critica o paradigma da representação na crítica e sugere um retorno à abordagem fenomenológica, focando no Stimmung (atmosferas e ambientes) criados pela literatura, que permite uma experiência estética mais vital e próxima, sem buscar “decifrar” significados fixos ou diagnosticar a literatura. Ele argumenta que o leitor, ao se entregar à “máquina infernal” do livro, empresta seu corpo e emoções, permitindo que as palavras produzam sentido dinâmico e “secretem uma significação nova”, além de qualquer código.
Por fim, o artigo aborda o “Efeito Werther” e a repercussão de obras como a série 13 Reasons Why, mostrando o temor da sociedade em relação ao impacto da literatura sobre o suicídio. Londero conclui que a sociedade é “esmagada pelo excesso de positividade” e que, por isso, “a ideia de morrer não pode morrer”, pois o que os especialistas da prevenção chamam de “imitação” e “sugestionabilidade” é, na verdade, uma “angustiada e complexa tentativa subjetiva de dar significação não apenas para a vida, mas principalmente para a morte”. A falta de um discurso socializável sobre o amor e o suicídio, que acolha a liberdade e singularidade do sujeito, contribui para o isolamento e sofrimento psíquico.
Ponto de Vista do Autor em Destaque
O ponto de vista de Rodolfo Rorato Londero se destaca significativamente em relação a outros artigos sobre o tema, especialmente aqueles que focam na prevenção ou em abordagens puramente científicas, por sua defesa intransigente da literatura como um campo crucial para a compreensão e enfrentamento do suicídio.
- Contraste com “Especialistas da Prevenção”: Londero se posiciona diretamente contra o discurso e as práticas dos “especialistas da prevenção”, como psiquiatras e psicólogos, argumentando que eles, ao tentar “proibir” ou “higienizar” a discussão sobre o suicídio, acabam por perpetuar o tabu e banalizar o sofrimento humano, reduzindo a questão a estatísticas ou disfunções médicas. Ele sugere que, ao focar apenas na eliminação do “mal”, esses especialistas ignoram a complexidade existencial do ato.
- Valorização da Negatividade na Literatura: Em vez de ver a arte como uma ferramenta de cura ou prevenção, Londero a vê como um espaço essencial para a reintrodução da “negatividade” e da realidade da morte em uma sociedade “marcada pelo excesso de positividade” e pela aversão ao sofrimento. Ele adota uma perspectiva batailleana, onde a literatura é “a parte maldita”, capaz de desnudar o jogo da transgressão e de dizer “tudo”, mesmo o desconcertante.
- Abordagem Fenomenológica e Corporal da Leitura: Londero propõe que a crítica literária foque no “Stimmung” (atmosferas e ambientes) e na experiência do leitor, que, ao “emprestar o corpo” à obra, se permite ser “possuído” por ela, vivenciando sensações e emoções que transcendem a mera decodificação de signos. Isso difere de análises que buscam apenas a representação de realidades extralinguísticas ou diagnósticos psicológicos dos autores, argumentando que a literatura não é um mero “teste projetivo”.
- O Suicídio como Expressão da Condição Humana: Para Londero, o suicídio, ou a ideia dele, é um problema filosófico fundamental, uma “tentativa subjetiva angustiada e complexa de dar sentido não só à vida, mas principalmente à morte”. Ele argumenta que a arte, ao invés de ser um “gatilho” perigoso, é o meio mais adequado para explorar essas questões existenciais e simbólicas, permitindo ao sujeito confrontar seus próprios “abismos”.
Em suma, Londero defende uma abordagem literária que abraça a complexidade, a ambiguidade e a dimensão sombria da existência humana, em oposição a uma visão utilitária ou higienista que busca patologizar e erradicar o suicídio. Ele vê a literatura não como uma “cura”, mas como um meio de conhecimento e de dar sentido à dor, mesmo que esse sentido seja o da negação ou da perda.
Menções de Escrita, Arte, Ferramentas, Projetos e Fontes de Inspiração
A seguir, a extração das menções diretas de escrita, arte, ferramentas, projetos e outras fontes de inspiração:
- Escrita e Arte (Gêneros, Formas, Conceitos):
- “ficção”: “fingimento pessoano”.
- “romance”: Os sofrimentos do jovem Werther de Goethe; a série 13 Reasons Why.
- Projetos e Iniciativas:
- “Concurso literário ‘Memória Viva: Histórias de Sobreviventes do Suicídio’” (da psicóloga Karen Scavacini).
- Outras Fontes de Inspiração (Autores, Obras, Conceitos):
- Cioran: Silogismos da Amargura; Nos cumes do desespero.
- Han, Byung-Chul: (mencionado por sua análise das “doenças neuronais” e da “sociedade de desempenho”).
- Georges Minois: História do suicídio.
- Mônica Manir: (jornalista da revista Piauí).
- A. Alvarez: (mencionado por sua visão sobre a arte e o sofrimento do artista).
- Georges Bataille: (mencionado por seus conceitos de literatura como “o mal”, “perda”, “transgressão”).
- Albert Camus: O mito de Sísifo (e o conceito de absurdo).
- Jean-Paul Sartre: (sua visão da leitura).
- Andrew Solomon: O demônio do meio-dia: uma anatomia da depressão (mencionado por sua descrição da depressão).
- Emil Kraepelin: (descrição da melancolia/depressão).
- Michel Foucault: (crítica foucaultiana da doença mental).
- Terry Eagleton: Teoria da literatura: uma introdução (criticado por sua visão da “crítica fenomenológica”).
- Maurice Merleau-Ponty: Fenomenologia da percepção e A prosa do mundo (por sua visão da linguagem e da leitura como experiência corporal).
- Roland Barthes: O prazer do texto (e a ideia do corpo na leitura).
- Jean Baudrillard: “terrorismo do código”.
- Jean-Luc Nancy: (mencionado em relação ao relativismo cultural).
- Goethe: Os Sofrimentos do Jovem Werther (e o “Efeito Werther”).
- Jeffrey Berman: (mencionado por seu estudo sobre sobreviventes do suicídio literário).
- David Foster Wallace: (como autor que usava notas de rodapé extensas).
- Platão: (mencionado por sua condenação da poesia trágica e o conceito de mímesis).
- Aristóteles: (mencionado por sua visão da imitação).
- Émile Durkheim: (mencionado por seu estudo sociológico do suicídio).
- Jay Asher: (autor do romance que inspirou 13 Reasons Why).
- Jean Paul: (citado na epígrafe final).
A reflexão de Londero, portanto, age como um espelho distorcido para a sociedade, refletindo não a imagem que ela quer ver de si (positiva e controlada), mas a sombria e desconfortável realidade da existência humana, que a literatura, com sua inerente “negatividade”, tem a coragem de confrontar.